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Vítima, estuprada por um tio, foi atendida no Recife após negativa de atendimento na cidade capixaba onde vive, mesmo com aval da Justiça. Ativistas radicais gritavam “Assassino” na porta da clínica neste domingo para que não se cumprisse a lei. Brasil aceita aborto em casos de estupro desde os anos 1940

A criança de 10 anos que engravidou após ser violentada por um tio em São Mateus, no Espírito Santo, começou o procedimento de aborto neste domingo, após o Tribunal de Justiça do Espírito Santo conceder a ela o direito previsto na lei brasileira de interromper uma gravidez fruto de um estupro. Por tratar-se de uma menina que era violentada desde os 6 anos, o caso deveria correr em absoluto sigilo, como tantos outros no Brasil, pela preservação da vítima e por tratar de um assunto delicado, que é o aborto, mesmo legal. Mas o processo da menina virou joguete político, depois de vazar para a imprensa sem explicação. O caso deveria ter ficado no âmbito da saúde, uma vez que outros casos do gênero nem passam pela Justiça. O procedimento de aborto foi concluído nesta segunda-feira.

Centenas de meninas estupradas são obrigadas a recorrer um aborto legal no Brasil sem precisar de autorização da Justiça e sem que a opinião pública tome conhecimento. O papel do serviço de saúde é seguir o protocolo do Ministério da Saúde para estes casos e realizar a interrupção da gravidez. Mas a repercussão obrigou o Estado do Espírito Santo a buscar uma solução longe dali. A menina viajou para o Recife, onde foi atendida no Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam), que atende casos como o dela. São ao menos 40 abortos legais por ano, segundo o doutor Olympio Moraes Filho, diretor do Cisam, e que já cuidou de muitos casos similares, seguindo a lei.

Ao lado da avó, e de seus bonecos de pano, a criança capixaba estava serena enquanto aguardava o início da primeira etapa do procedimento, relatam testemunhas. Estuprada desde os 6 anos por um tio, a vítima e sua família perderam a privacidade inerente a casos tão violentos como este. Do lado de fora da clínica, um grupo de pessoas de mãos dadas gritavam “Assassino” para o médico Moraes Filho. A vó, no entanto, estava segura da decisão tomada, seguindo o pedido da própria neta.

O caso ganhou repercussão depois que a ministra Damares Alves, da Secretaria da Mulher, deu publicidade ao caso em redes sociais, e enviou emissários para a cidade do Espírito Santo. Neste sábado, Alves se manifestou em sua página do Facebook, lamentando a decisão da Justiça de autorizar o aborto. Também bolsonarista Sara Giromini, que ganhou fama por fazer protestos em frente ao Supremo Tribunal Federal e chegou a ser presa, expôs o detalhes do caso nas redes sociais. Damares já havia enviado emissários da Secretaria para São Mateus para acompanhar o caso.

O gesto da ministra criou um clima de terror e de caça às bruxas na Justiça de São Mateus, uma cidade de 130.000 habitantes, a 183 quilômetros da capital capixaba, Vitória. O assunto virou palanque político, segundo fontes próximas ao caso, e uma “crueldade cínica” para a vítima, que é negra, e vive com a avó, ambulante. A sensação de que ela poderia dar conta de uma violência dessa estatura mostrou traços de racismo e indiferença pela sua classe social entre os que a atenderam no serviço público, dizem. A menina vive um quadro comum a milhões de crianças pobres no Brasil. Sua mãe foi embora, o pai está preso, e o tio que a estuprou, e é procurado agora pela polícia, é um ex-presidiário.

A avó, porém, é identificada como alguém bastante responsável com a educação da menina. Só não estava por perto dela quando tinha de trabalhar. Tanto ela como a própria neta deixaram bem claro à Justiça que queriam ser amparadas pela legislação brasileira e interromper a gravidez que é fruto de violência. A reação da menina era de desespero quando se insinuava manter a gravidez, segundo testemunhas. Ela já está de 22 semanas, prazo limite para interromper a gestação, segundo norma técnica do Ministério da Saúde. Para Fagner Andrade Rodrigues, promotor da Infância e Juventude de São Mateus, a interferência externa, neste caso, é inadmissível. “A difícil escolha íntima a cargo da família da vítima de violência não pode sofrer interferência política, religiosa ou de qualquer natureza”, diz ele. “Trata-se de uma violação abominável aos direitos humanos”, completa. O aborto em caso de estupro de vulnerável está previsto no Código Penal Brasileiro há 80 anos.

O médico Olympio Filho encarou a pressão sem temer represálias. Não é a primeira vez que o obstetra se vê diante de um caso que gerou estardalhaço público. Há 12 anos, ele chegou a ser excomungado pela Igreja de Pernambuco por interromper a gravidez de uma menina de 9 anos, que também fora estuprada pelo padrasto. Agora, sofre pressão de evangélicos do Estado. É ele quem vai examinar o caso da criança grávida que chega do Espírito Santo para obedecer ao procedimento e ao desejo dela. “Manter a gravidez é um ato de tortura contra ela, é violentá-la novamente, é o Estado praticar uma violência tão grande ou maior do que ela já sofreu”, afirma. Há, ainda, um risco obstétrico, de hemorragia, além de pesar a ausência de estrutura psicológica para assumir uma maternidade fruto de uma violência, alerta. “Primeiro é preciso preservar a criança [vítima do estupro], e depois dar o apoio psicológico para ela superar isso. O dano é muito maior se você a obriga a manter uma gravidez”, completa.

Um dos pontos aos quais os conservadores se apegam é o fato de a gravidez ter chegado 22 semanas. Essa seria a razão para o hospital que atendeu a jovem ter sido contrária a apoiar a interrupção da gravidez. “Quanto sofrimento!”, escreveu a ministra Damares Alves, em sua página no Facebook. “Os médicos do Estado do Espírito Santo entendem que o aborto nesta idade pode colocar em risco a vida da mãe ou deixá-la com sequelas permanentes, como útero perfurado”, diz ela, algo que contradiz a própria norma técnica do Ministério da Saúde.

A norma prevê que em caso de estupro o aborto pode ser feito com até 22 semanas de gestação, ou o feto pesar 500 gramas. A ministra, porém, apelou para seu lado religioso ao abordar a questão. “Meu coração aqui apertado. Desde domingo passado oro por esta criança para que tudo sua vida seja preservada e para que ela fique bem”, disse, dizendo que confia no poder Judiciário para cuidar do caso.

Especialistas garantem que não há restrições para abortos quando a vida da mãe corre risco, como é o caso da criança capixaba. Se por um lado há barulho e um clima ameaçador para quem está dando suporte à menina capixaba, por outro, a publicidade pode ter um efeito bumerangue. Ao cumprir a lei e realizar o procedimento, o caso se torna pedagógico para os hospitais públicos de cidades menores que se deparam com casos dessa natureza. A cada hora, quatro meninas brasileiras de até 13 anos são estupradas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e a maioria dos crimes é cometido por um familiar. Em 2018, último dado disponível, foram mais de 66.000 estupros no Brasil, 53,8% de meninas com menos de 13 anos. O embate de conservadores, incluindo a bancada evangélica, se intensificou nos últimos anos, seguindo o padrão da direita radical em outros países.

 

 

 

 

 

FONTE: EL PAÍS