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Tortura psicológica, perseguições, ameaças, tiros… A história de Júlia (nome fictício), de 28 anos, se assemelha a de outras 43 mulheres de Campinas (SP) vítimas de violência e das quais os nomes estão associados às estatísticas policiais com a palavra “feminicídio”. A diferença está no fato de que a jovem é uma sobrevivente. Ela é uma entre 15 vítimas que, de acordo com dados obtidos pelo G1 via Lei de Acesso à Informação (LAI), estiveram frente a frente com o ódio e escaparam da morte, mas com marcas difíceis de esconder. “É um trauma para a vida inteira”, garante.

De 44 casos de feminicídio tentados mapeados em Campinas entre 2015 e 2019, em 65% deles as vítimas vieram a óbito. Mesmo sendo atingida por dois tiros, um no abdômen e outro na cabeça, Júlia sobreviveu. E seu depoimento conduz a 3ª reportagem da série “Vidas Contadas – Feminicídios”, uma parceria do G1 com a EPTV.

‘Eu lembro de tudo’

Passados quase dois anos do dia em que a vida “virou de cabeça para baixo”, Júlia tenta entender o porquê tudo aconteceu. Vítima de um ex-namorado que mostrou-se perturbado um ano após o fim do relacionamento, ela conta que jamais esperava um desfecho trágico como o que ocorreu. “Até hoje eu não sei o que eu fiz pra ele.”

“Foram três meses de namoro e quando terminei foi tranquilo. Tudo mudou após um ano. Começou uma violência psicológica, criou perfil falso, ligava, perseguia. Uma vez perguntei o que tinha feito pra ele, e ele disse que ‘eu tinha nascido’. Não sei o porquê fez isso.”

Se não tem ideia do que teria feito à pessoa com quem conviveu para que ela resolvesse transformar sua vida em “um inferno por mais de quatro anos”, Júlia revive, todos os dias, a manhã que marcou sua história.

“Eu lembro de tudo, de cada detalhe, não tem como esquecer. Aquele dia marcou.”

Com a respiração pausada, voz trêmula e lágrimas, Júlia descreve, com detalhes, o cenário de horror que enfrentou. Na ocasião, o namorado com quem havia comemorado um ano de relacionamento e com quem tinha planos de casar, também acabou vítima da fúria do ex. Foi baleado na cabeça e, apesar dos esforços, morreu no hospital.

Júlia enfrentou a mira do revólver e, mesmo ferida no abdômen e na cabeça por estilhaços de uma bala, tem gravada na memória a imagem do namorado agonizando.

“Não pensava em mim naquele momento. Fui sacudir ele… Mas aquela cena, ver a pessoa daquele jeito. Ele estava vivo ainda, mas inconsciente, com um tiro na cabeça, respirando com dificuldade. Começou a sair sangue pelo nariz, pela boca… (pausa). Não desejo isso para ninguém”, diz.

Apesar de relatar o drama do namorado, Julia também lutava pela vida. Quando se deu conta, a tontura chegou e a perda de sangue agravou. Foi socorrida, com ajuda de helicóptero, e sobreviveu. Recebeu alta a tempo de velar o companheiro, e enterrar com ele os sonhos interrompidos pela violência desmedida.

“Acabou tudo. Acabou o sonho de casar. Tanto que hoje eu não faço mais planos pra daqui um ano. Pra que? Uma hora tudo pode acabar…”

Jovem mostra cicatrizes de tiro que atravessou o abdômen em tentativa de feminícidio em Campinas: "Está marcado também na mente e no coração" — Foto: Fernando Evans/G1

Jovem mostra cicatrizes de tiro que atravessou o abdômen em tentativa de feminícidio em Campinas: “Está marcado também na mente e no coração” — Foto: Fernando Evans/G1.

Cicatrizes

Duas pequenas cicatrizes no corpo, duas enormes, na cabeça e no coração. É assim que Júlia sobreviveu a tentativa de feminicídio. Se não consegue apagar o que viu e viveu, ela conta que pensa, ao menos, em esconder a marca daquele dia do corpo.

“Penso em fazer uma tatuagem, quero esconder. Apesar de a marca não ser só na pele, é algo que quero fazer.”

Entre as cicatrizes que o crime deixou em sua vida estão as dores da perda e a dificuldade de lidar com isso. Júlia faz acompanhamento com psicólogo desde que passou a ser perseguida pelo ex, e agora tem a companhia de um psiquiatra, além de medicação para lidar com a depressão.

“O que tento fazer é seguir a vida, aos poucos. Mas é difícil. Chorei por 60 dias seguidos. Acordava chorando, dormia chorando. Nem sei como o corpo humano produz tantas lágrimas. O que aconteceu… é uma dor insuportável, sabe? Já é uma dor perder alguém, da forma que foi, foi horrível”, afirma.

Medida protetiva

Durante o período em que sofre com as perseguições do ex até o dia do crime, Júlia precisou conviver entre delegacias e Ministério Público. Foi buscar ajuda e conseguiu medidas protetivas para o homem não a procurasse ou a encontrasse.

Se atualmente os dados mostram aumento nas medidas protetivas concedidas pela Justiça em Campinas, com alta de 117,6% de 2017 para 2018 e emissão em até cinco dias, a realidade para a jovem foi outra. O recurso demorou para sair, mas o documento não impediu o ex de agir.

“Eu tinha medida protetiva, mas quando eu precisei… Quando vejo no jornal outro caso de feminicídio, já penso: ‘isso (medida protetiva) é uma ilusão. Quando a pessoa põe na cabeça que quer matar, ela faz. Passa por cima de tudo e faz.”

Se não teve a proteção que esperava com a medida que tinha em mãos, a jovem se protege hoje de outra maneira. Mantém distância. Segundo ela, é difícil voltar a confiar em alguém, e a preferência atual é por ficar recolhida, menos exposta.

“Hoje prefiro ficar no meu quarto, lendo ou vendo séries. Até já me chamaram para sair, mas não fui. Dou desculpas. É difícil confiar nas pessoas. O meu ex não parecia ser o que virou. Se soubesse que ele fosse fazer tudo isso, jamais teria relacionamento com essa pessoa”, completa.

Mulheres vítimas de feminicídio nas regiões de Campinas e Piracicaba — Foto: Arte/G1

Mulheres vítimas de feminicídio nas regiões de Campinas e Piracicaba — Foto: Arte/G1

As vítimas

2015

  • Daniele Aparecida de Sá, 32 anos
  • Alexandra Alves da Silva Oliveira, 38 anos
  • Maria do Carmo Lopes, 74 anos

2016

  • Laís Santos de Souza, 29 anos
  • Maria de Lurdes Cain Signoretti, 76 anos
  • Maria Salete da Silva Goulart, 59 anos
  • Rosimeire Alves Matias, 33 anos
  • Priscila Cristina Pupo, 31 anos

2017

  • Abadia das Graças Ferreira, 56 anos
  • Antônia Dalva Ferreira de Freitas, 62 anos
  • Larissa Ferreira de Almeida, 24 anos
  • Liliane Ferreira Donato, 44 anos
  • Ana Luzia Ferreira, 52 anos
  • Carolina de Oliveira Batista, 26 anos
  • Alessandra Ferreira de Freitas, 40 anos
  • Isamara Filier, 41 anos
  • Luzia Maia Ferreira, 85 anos
  • Aline Bortolosso, 35 anos
  • Adriana Aparecida Bueno, 43 anos
  • Ana Cristina Gallo, 29 anos
  • Alexandra Aparecida Gallo, 35 anos
  • Solange Ricardo Tomaz Fray, 54 anos

Adriana Oliveira Silva, 40 anos.

2018

  • Maria de Lourdes de Oliveira Araújo, 56 anos
  • Joana Pereira Chaves, 45 anos
  • Taiz de Sá da Paz, 24 anos
  • Maria Rosemi dos Santos, 42 anos
  • Sabrina do Amaral Vechi, 39 anos
  • Marly Ribeiro Gonçalves, 47 anos
  • Nilza Mamede Ribeiro, 50 anos
  • Daisy Aparecida Batista André, 21 anos
  • Jennifer dos Santos Leite, 30 anos
  • Géssica Monique de Oliveira, 25 anos
  • Marília Camargo de Carvalho, 25 anos
  • Mara Cristina da Silva, 51 anos
  • Vaneza Oliveira de Souza, 31 anos
  • Fernanda Martins da Costa Sá, 33 anos
  • Camila de Souza Santana, 24 anos
  • Érika Cristina Cardozo da Silva, 35 anos
  • Ana Regina Franco da Silva de Moraes, 38 anos
  • Kátia Keiko Picioli Ferreira, 40 anos
  • Larissa Carolina Bernardo, 22 anos
  • Antônia Maria dos Santos, 48 anos
  • Kelly Cristina Sepulveda Braz, 41 anos
  • Elida Paula da Silva de Oliveira, 40 anos

2019

  • Queli Aparecida de Siqueira Simon, 39 anos
  • Milena Optimara Soares Cardenas, 13 anos
  • Bruna Aparecida Rodrigues Pediano, 30 anos
  • Nice Romualdo Vieira, 53 anos
  • Fátima Aparecida Bertoline, 40 anos
  • Cláudia Lopes Aragão, 44 anos
  • Patrícia Gomes da Cruz, 37 anos
  • Thaís Fernanda Ribeiro, 21 anos

Vidas Contadas – Feminicídios

Nome da série de reportagens que abordou casos de mortes violentas em Campinas (SP) durante um ano, “Vidas Contadas” volta à cena para mostrar, entre os dias 27 e 31 de maio de 2019, os casos de feminicídios e violência contra a mulher registrados nos 49 municípios da área de cobertura da EPTV Campinas.

Na primeira reportagem, o projeto “Vidas Contadas – Feminicídios” apresentou um raio-X com o perfil das 53 vítimas. Na 2ª, trouxe dados sobre violência doméstica e medidas protetivas. Nesta quarta (29), o G1 mostra dados de sobreviventes em Campinas e o relato de uma jovem que foi baleada pelo ex e viu o namorado morrer. Nas próximas reportagens, confira o impacto dos crimes na vida dos órfãos do feminicídio e casos que ainda não foram tipificados.

Fonte: G1