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Cintia e Thiago são um ex-casal e dividem a guarda de Miguel desde que o menino, agora com 6 anos de idade, tinha um. Em paz e comum acordo, os pais divorciados decidiram que a casa da mãe seria o domicílio fixo da criança e que dividiriam entre eles igualmente o tempo com o filho. Dessa forma, Miguel passava uma semana com Cintia e uma semana com Thiago, salvo exceções como viagens e compromissos inesperados por parte dos genitores. Nada e nem ninguém havia causado estresse na dinâmica até que o coronavírus se instalasse no Brasil e fizesse de São Paulo, a cidade da família, seu epicentro no país.Cintia, redatora publicitária, foi liberada para homeoffice na última quarta-feira, 18, mas o mesmo não aconteceu com o ex-marido. Thiago, que atua como analisra no mercado financeiro, continua saindo de casa e indo ao trabalho todos os dias. Sua empresa determinou um regime de turnos entre os funcionários, além de novas medidas sanitárias no ambiente em que ficam – o que faz com que Thiago trabalhe sozinho e passe menos horas no escritório.

Para ele, as medidas seriam suficientes para que continuasse recebendo o filho em casa, mesmo com a pausa na escola do menino. A mãe de Thiago, que mora no mesmo prédio que o filho, ficaria com o neto durante as tardes. À noite, Miguel voltaria para a casa do pai. O esquema estava montado na cabeça do analista, nada daria errado. Na cabeça de Cintia, as coisas soam diferente. Apenas o fato de locomover o filho em um cenário de pandemia já é motivo para repensar o plano. “Eu ainda fiquei preocupada com a exposição a qual submeteríamos minha ex-sogra, que apesar de saudável, tem 62 anos e é enquadrada em grupo de risco”, conta a publicitária.

Até o fechamento deste texto, os pais de Miguel ainda não haviam chegado a um acordo quanto ao regime de convivência, se ele deveria ou não ser adaptado a uma pandemia que só promete se agravar nas próximas semanas. Por enquanto, a criança segue com a mãe e faz vídeo chamadas com pai todos os dias depois do jantar. Nas conversas, o assunto isolamento social já é abordado. “Enquanto não decidimos o que fazer, tentamos explicar, na medida do possível, o que está acontecendo com o mundo e isso inclui uma mudança na rotina das famílias”, diz a mãe.

Na última semana, um pai em São Paulo foi impedido de ver a filha de 2 anos após retornar de viagem a países com casos confirmados da doença América Latina. O homem não apresentava sintomas, mas a mãe pediu prazo de 15 dias antes de permiti-lo visitar a criança. As advogadas usaram dados do Ministério da Saúde para defender que o vírus pode ficar 14 dias incubado antes de se manifestar.

Para esclarecer dúvidas a respeito da guarda compartilhada em situações de exceção como a que enfrentamos, ouvimos Vanessa Chacur Politano, advogada especialista em direito de família e sucessões pela faculdade de direito da USP. Abaixo, ela responde sobre o tema.

Marie Claire. Pensando em guarda compartilhada e regime de convivência, nossa legislação contempla cenários como o que vivemos agora? Por exemplo, o de uma pandemia que muda a vida das pessoas e as fazem parar?
Vanessa Chacur Politano. Embora legislações afeitas a outras matérias (em especial a trabalhista) preveja situações como a que estamos vivendo, a legislação específica de direito de família – Lei 13.058/2014 – não faz qualquer previsão. Isto quer dizer que não há a previsão de interrupção, por exemplo, do regime de convivência entre pais e filhos com base em força maior – ou seja, evento imprevisível da natureza que muda o estado das coisas.

Como a lei define os exercícios de guarda compartilhada e regime de convivência?
O exercício da guarda compartilhada é o conjunto entre os genitores da tomada de decisões importantes sobre a vida do filho, tais como escolha da escola, médico e religião. De outro lado, tem-se o regime de convivência, ou seja, a divisão entre os genitores do tempo que permanecem em companhia com o filho. Esse regime de convivência pode ser mais ou menos largo, prevendo mais ou menos horas e dias de convívio com o genitor que reside em outro local que não o domicílio fixo da criança. Todavia, ambos os genitores têm direito ao convívio com o filho, o que é de suma importância para o crescimento sadio do menor, de modo que a convivência com o outro deve ser incentivada pelos dois, ainda que dentro desse cenário de confinamento.

Qual são as suas sugestões para os ex-casais que dividem a guarda em um momento como o de agora?
Diante do cenário atual e dos riscos de deslocamento, o ex-casal que tem filho em comum, qualquer que seja o tipo de guarda (unilateral ou compartilhada) e qualquer que seja o tipo de regime de convivência (mais ou menos largo) deve tomar suas decisões com base no bom-senso e, acima de tudo, pensando no melhor para o menor. Por exemplo, não é razoável que o pai queira levar o filho para jantar fora de casa no dia de convivência a que tem direito. Também não é razoável que o pai exija o deslocamento não seguro da criança, que põe em risco a saúde do filho. Esse tipo de comportamento, desde que comprovado, justificaria a não entrega da criança pela mãe. É razoável se pensar em alternativas, por exemplo, realização de ligações por chamadas de vídeo para troca de experiências e manutenção do vínculo entre filho-genitor.

E se uma das partes faz questão de continuar o compartilhamento? Trocando a criança de casa toda semana, por exemplo.
Sugiro que os pais ajustem, de comum acordo, um regime de convivência temporário que provoque menos deslocamentos, de forma que a criança permaneça mais tempo com cada um dos pais, ou ainda, a garantia de deslocamento seguro, com a criança protegida de porta a porta, sempre assegurando a sua higiene completa na chegada a casa do outro genitor, nos termos das orientações médicas que são veiculadas na mídia.

E se há desentendimento entre os pais a ponto de não chegarem em um acordo?
A orientação para o genitor que se vê hostilizado pelo ex-parceiro quando se nega a entregar o filho por temer pela integridade física da criança diante da situação inóspita das ruas da cidade em virtude da pandemia, é que tome suas decisões com base no melhor interesse do menor. Deve garantir que a sua decisão negativa de entrega esteja respaldada em justificativa que vise o melhor pra criança, reunindo provas documentais para evitar problemas na justiça, por exemplo, arquivando ou gravando as conversas onde o outro genitor demonstra agir ou pretender agir de forma irresponsável com a integridade física e a saúde da criança – o pai ou a mãe, que, por exemplo, diz que vai levar o filho ao parque ou ao shopping ou que já fez isso anteriormente desde que a pandemia chegou ao país, expondo descuidadosamente o filho.

E na situação em que uma mulher se vê ameaçada ou hostilizada num processo desses, o que deve fazer? Por exemplo: a mãe diz que por enquanto os filhos ficam com ela e o pai nega isso e ainda a humilha, maltrata.
Ela deve procurar seu advogado imediatamente, a fim de que o profissional a oriente da melhor forma acerca das medidas legais cabíveis, conforme o caso. Deve guardar provas das ameaças também, como citei na pergunta acima. Se ela se sentir em perigo, deve fazer uma denúncia [para isso existe o 180, o telefone da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência que recebe queixas e orienta sobre direitos].

Em algumas cidades brasileiras o toque de recolher já é uma realidade. Em cidades europeias, há multa se o cidadão sai de casa sem justificativa emergencial. E em caso assim, em que os governos decretam que paremos de sair de casa?
Os pais precisam conversar e se adaptar, sempre pensando no melhor cenário para os filhos. Dito isso, na hipótese de descumprimento injustificado do regime de convivência ou de desentendimento sério entre os genitores, é melhor que advogados sejam acionados para a tomada de providências cabíveis, que serão analisadas pelo Ministério Público e pelo juiz caso a caso. E, então, me permita lembrar que neste momento a Justiça está funcionando de forma reduzida, como se estivesse em regime de plantão de final de ano. Então pode levar tempo.

 

 

 

Fonte: Marie Claire