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Em entrevista em frente ao Palácio do Alvorada, na terça-feira (17), Jair Bolsonaro disse que a Itália, o foco das mortes de coronavírus até aqui, é um país parecido com o bairro de Copacabana, onde “cada apartamento tem um velhinho ou um casal de velhinho”. Como são muito sensíveis, minimizou o presidente, “morre mais gente”.

Em sua live semanal, dois dias depois, ele disse que seu trabalho era não levar pânico à população. Para isso, lembrou que apenas “uma pequena parcela da população” será sujeita a internação caso seja infectada pelo covid-19. “Mais da metade adquire o vírus e nem fica sabendo. Dessa outra metade que sobra, quase 80 e poucos por cento, segundo dados estatísticos aí, vão ter algum tipo de sintoma apenas em torno de 5% e, assim mesmo, num percentual menor disso, depois em cima disso, que pega os mais idosos, que vai ter algum problema mais grave”.

A tentativa de acalmar os ânimos gerou um efeito contrário nos grupos mais vulneráveis que nos últimos dias cansaram de ler notícias com alertas de que não, o vírus não será fatal – “apenas” contra idosos e pessoas com doenças crônicas. (Uma dessas notícias trazia um áudio do empresário e apresentador Roberto Justus dizendo que 90% da população não correm riscos, “só velhinho e gente já doente”).

E quem está doente e têm outros planos na vida além de morrer numa pandemia? Como se sente com frases assim?

“Eu sou uma dos ‘apenas'”, diz, em tom de desabafo, a antropóloga e professora da Unicamp Adriana Dias.

Diretora do Instituto Baresi, um fórum em defesa de pessoas com doenças raras, Adriana Dias está perto de completar 50 anos com problemas respiratórios e uma doença óssea crônica, a osteogênese imperfeita (conhecida como “doença dos ossos de vidro”). Ela é responsável por um estudo, publicado recentemente no blog, que apontou a ascensão de células neonazistas no país.

Nos grupos de WhatsApp que participa com outras pessoas com deficiência, é grande a preocupação com o esforço em minimizar e restringir os perigos do coronavírus a uma doença de pessoas idosas ou com doenças crônicas. “Estamos dentro dessa faixa. Somos muitos ‘apenas'”, diz.

Para ela, a mensagem do governo até o momento é capacitista e ageísta. Ela se refere à discriminação de pessoas com deficiência e mais velhas. Já o áudio do empresário é “a prova do que a elite brasileira é”.

Em artigo para o site da revista “Fórum”, a antropóloga escreveu que considera esse “apenas” das falas oficiais como um aviso de descarte – e lembra que o país possui 30 milhões de idosos, segundo o Censo de 2010, além de 10 milhões de pessoas com doenças raras, que podem tornar-se crônicas.

Um exemplo é o grupo dos diabéticos, que no Brasil possui mais de 13 milhões de pessoas.

“Pelo Skype tenho falado com amigos cadeirantes que, por estarem nessa condição, têm a função respiratória mais frágil e cabem também nesse ‘apenas’. Tenho falado com mães com medo por seus filhos, e com filhos com grande temor por seus pais”, escreveu ela.

No texto, Adriana Dias criticou ainda o fato de que, enquanto em países da Europa os governos assumem parte dos salários das empresas para evitar demissões, no Brasil a proposta é que empresários possam reduzir salários juntamente com a carga horária.

Ao blog, Adriana desabafa: “Eu me preocupo porque lutei muito para chegar onde cheguei, apesar dos meus problemas respiratórios e da minha doença crônica óssea, que dificulta muito a intubação respiratória. Eu tenho doutorado pela Unicamp, combato neonazismo no Brasil, lutei muito pelo direito das pessoas com deficiência, das mulheres, contra o racismo. Escrevi mais de 60 leis, entre municipais, estaduais e federais, em vertentes de direitos humanos diversos. Tudo foi conquistado com muito esforço. E está sendo dito que minha vida é eliminável”.

Dias afirma que, em suas pesquisas, entrevistou muitos judeus que sobreviveram ao Holocausto e hoje “já estão muito velhinhos”. “Muitos não têm recursos. Se esse vírus atingi-los, dificilmente sobrevivem. E eles sobreviveram ao que de pior a civilização criou, o Holocausto. Viram coisas indizíveis nos campos de concentração. E agora deveriam ser protegidos.”

A antropóloga faz paralelos entre os contextos do surgimento da chamada “gripe espanhola” – que de espanhola não tinha nada e explodiu entre o fim da Primeira Guerra Mundial e o início da ascensão do nazismo – e o capacitismo mal disfarçado nos discursos sobre a pandemia atual. “Os momentos são muito parecidos.”

 

 

Fonte: Universa