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Medo, culpa e desconfiança da própria lucidez marcam as mulheres assediadas. A lógica do “congelamento”, que paralisa a denúncia, tem garantido a tranquilidade dos agressores ao longo de décadas. Mas o que nos trouxe aqui enquanto sociedade? Por que a palavra da vítima é constantemente colocada em cheque em detrimento de um crime tão perverso? É preciso entender as raízes do problema para sairmos dele

 

Em 2011, aos 26 anos, tive meu primeiro emprego como repórter. Um emprego que se tornou, instantaneamente, minha conquista mais importante. Mesmo nas horas livres, saía com os colegas do trabalho para falar de trabalho. Foi em uma dessas ocasiões que fiquei com um colega. O colega era meu chefe.

Há muita história entre a noite em que ficamos, a minha demissão, uma dedada violenta na vagina durante uma discussão registrada pelas câmeras de segurança do meu prédio, intimidações, e o momento em que enfim entendi que tinha sido abusada. Mesmo quando me dei conta de que os únicos culpados por abusos são sempre seus autores, tive medo de levar o caso à justiça. Primeiro por receio de colocar minha carreira em risco. Mais tarde, me casei e ponderei o constrangimento que poderia causar para o meu marido e nossas famílias caso tornasse a história pública. Hoje, continuo me sentindo violada em diversos níveis por tudo o que aconteceu mas, mesmo tendo provas materiais do ocorrido, temo sofrer um prejuízo material e emocional que talvez ainda não tenha recursos para bancar.

João de Deus (Foto: Ilustração Silvana Martins)

No último 8 de dezembro, o programa Conversa com Bial exibiu acusações de abuso sexual contra o médium João Teixeira de Farias, mundialmente conhecido por realizar atendimentos espirituais como João de Deus em Abadiânia, Goiás, há quase quatro décadas. Os testemunhos detonaram um efeito cascata sem precedentes em termos de denúncias de crimes sexuais no país.

Até o fechamento deste texto, ao menos 100 mulheres haviam oficializado suas acusações e prestado depoimento contra o médium. Como se não fosse o bastante, mais de 500 relatos de abuso chegaram até o Ministério Público de Goiás, que criou um canal para as delações, que podem ser feitas por e-mail ou telefone. A repercussão do caso reacendeu a pergunta: por que as vítimas de abuso sexual costumam demorar para denunciar seus agressores? Em alguns casos, são décadas de silêncio. Muitas vezes, a denúncia nunca ocorre. Segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha em 2018, 42% das brasileiras já passaram por uma situação de assédio sexual. Como era de se esperar, a maioria não formaliza nenhuma denúncia, mesmo que tenha recursos para isso – como foi o meu caso.

Para a psicanalista Maria Homem, que estuda a subjetividade humana há três décadas, a culpa que senti, e que outras mulheres sentem diante de um abuso, está originalmente ligada à representação do sexo em nossa sociedade. “O imaginário do encontro sexual é marcado pela história bíblica da queda do paraíso. O desenho é o de Eva seduzindo Adão por intermédio da serpente demoníaca, provocando a expulsão da humanidade do Éden. Em outras palavras, culpar a mulher pela tentação do homem é uma prática que tem pelo menos 3 mil anos, documentada”, explica.

Na visão de Maria Homem, a passagem bíblica é uma faceta fundamental para entendermos como interpretamos a interação sexual entre homens e mulheres de todos os tempos. “A ideia de que a mulher sempre seduz é profunda em nossas cabeças. É daí que vem a clássica dúvida sobre a roupa de vítimas de estupro ou sobre os sinais de disponibilidade que elas podem ter dado aos agressores”, continua.

A mitologia da mulher sedutora, de acordo com a psicanalista, não é algo que podemos simplesmente apagar do inconsciente coletivo. Por essas e outras, nos resta debater por que a sexualidade feminina foi colocada nesse lugar e como esse mesmo lugar tem provocado o sentimento de culpa em vítimas de violações. “Em alguma medida, sim, a sexualidade das mulheres é permeada pela culpa. Para exercitá-la, a maioria de nós passa por essa ‘obrigação’ de seduzir. Quando somos violadas, nos sentimos automaticamente responsáveis em alguma medida. Daí a dificuldade para saber se poderíamos ou deveríamos reagir”, conclui Maria Homem.

Em alguma medida, sim, a sexualidade das mulheres é permeada pela culpa.
Maria Homem

O medo de represálias
Mas culpa ou vergonha não são os únicos fatores paralisantes para as vítimas de abusos. Especialmente para as mulheres violadas por João de Deus. Silvia Chakian, promotora de justiça integrante do MP de São Paulo, escutou depoimentos de 22 delas e destaca que o medo de retaliações espirituais é uma constante. “Existe um padrão entre elas. Durante a violência, estavam em um estado de fragilidade descomunal, porque eram portadoras de doenças sem cura ou tinham filhos e parentes entre a vida e a morte. Muitas das vítimas depositaram nesse homem a última esperança de uma cura, então sofriam abusos, mas tinham medo de que a reação pudesse piorar o estado de saúde delas ou de entes queridos. É o aspecto mais sórdido do caso”, diz.

Para a promotora, não faz sentido criticar quem confiou no líder espiritual em Abadiânia sem ter em conta o estado de completa desesperança e vulnerabilidade destas pessoas. “O elemento surpresa foi especialmente paralisante para essas vítimas, por causa das circunstâncias. Elas jamais esperariam esse comportamento violento de alguém que estava ali para salvar vidas e trazer acolhimento. Na verdade, elas se sentiam privilegiadas por serem atendidas por João de Deus, um guru tão disputado.” Até a vítima digerir o que estava acontecendo, o abuso já havia sido levado a cabo.

Sobre as acusações contra o líder espiritual, Silvia afirma que existe uma linha contundente entre elas, a de que os testemunhos descrevem ataques muito semelhantes e foram revelados por mulheres que não tinham contato algum entre si, mas davam detalhes idênticos de violações ocorridas ao longo de décadas. Vítimas de João de Deus chegaram a sofrer ameaças de morte depois que as denúncias vieram à tona. Uma testemunha-chave do caso precisou deixar o país às pressas na última semana, temendo pela própria segurança. A mulher, que vive na região Sul do país, se dirigia a uma delegacia para prestar a queixa-crime quando foi ameaçada por pessoas supostamente ligadas ao médium.

João de Deus (Foto: Ilustração Silvana Martins)

“Será que estou louca?”
Após passar pela experiência de agressão, é comum que a vítima sinta estresse pós-traumático e questione a própria lucidez quando tenta remontar a história que a levou até a cena da violência. Vana Lopes, criadora da ONG Vítimas Unidas, foi violentada pelo médico Roger Abdelmassih (que estuprou outras 39 mulheres além dela) e teve sua saúde mental contestada pela equipe de defesa de Roger, que atualmente cumpre prisão domiciliar em um bairro nobre de São Paulo.

“Fui a primeira a prestar queixa contra Abdelmassih, em 1993. Na ocasião, meu boletim de ocorrência sumiu da delegacia, mas mantive uma cópia. Nem o Ministério Público e nem o Conselho Regional de Medicina acreditaram em mim. Quando as vítimas se articularam e conseguiram comprovar os estupros, eu já havia sofrido todas as consequências físicas e psicológicas possíveis: larguei minha profissão de estilista porque não queria mais fazer roupas bonitas, queria fazer burcas; cheguei a pesar 150 quilos e fiquei quatro anos enclausurada em casa, com síndrome do pânico. Passei mais tempo presa e duvidando do meu próprio juízo do que ele na cadeia”, relembra Vana, que publicou o livro Bem-Vindo ao Inferno (Matrix, R$ 38,90, 424 págs.) sobre o caso, com prefácio do agora ministro Sérgio Moro.

A promotora Silvia Chakian diz que, nesse sentido, as denúncias coletivas são importantes e podem desencadear uma revolução: quando as vítimas descobrem que outras passaram pelo mesmo que elas, se sentem mais seguras de que serão de fato ouvidas. Sentem ainda que seus testemunhos não serão desqualificados como poderiam ser se estivessem sozinhas, denunciando abusos pontuais de homens que podem não ser agressores em série. A ideia é a mesma que explica a força do movimento #MeToo nos Estados Unidos, que descortinou o assédio de homens poderosos do showbiz americano.

Quando a reputação masculina pesa
Além do medo, da culpa e da dúvida sobre a própria lucidez, vítimas de abusos sexuais costumam carregar um peso extra na hora de reportar os crimes: o de arranhar a reputação de seus maridos, filhos e familiares. “Tenho duas vítimas de Abdelmassih na ONG que só pretendem fazer a denúncia depois que seus maridos morrerem”, revela Vana, que diz que o abuso vivido também causou um enorme estrago em sua própria vida conjugal. Ela se separou e passou anos com dificuldades para se relacionar afetivamente.

De maneira mais ou menos sutil, acredita Vana, os cônjuges de vítimas de abusos acabam se identificando com a figura popular do “corno”. “E as mulheres não costumam querer abraçar mais transtornos pessoais além daqueles já impostos pela violência que sofreram”, prossegue. Trocando em miúdos, a reputação masculina ainda está um degrau acima do sofrimento feminino na escala de prioridades sociais. Nesse ponto, homens e mulheres de qualquer extrato social caem na mesma armadilha. Mulheres não denunciam. Seus parceiros não demonstram acolhimento. O silêncio permanece.

Por que denunciar?
Há chances, claro, de que nem toda denúncia de estupro seja verdadeira. Mas é incontestável que a esmagadora maioria é. Uma pesquisa norte-americana confirmou a versão das vítimas. Conduzida pelo psicólogo clínico e consultor forense especialista em estupro David Lisak, ela analisou dez anos de dados e concluiu que nove entre dez relatos de estupro são, sim, verídicos.

Bem, este texto tentou até agora desenhar os motivos que levam uma mulher abusada sexualmente a guardar a violência para si. É importante que possamos ver e reconhecer os medos, as culpas, as vergonhas e as cicatrizes sociais capazes de congelar a pessoa abusada. No entanto, enfatizo aqui: é justamente importante para que possamos olhar com empatia para as vítimas, nos colocarmos no lugar delas e lutarmos – se juntas, melhor ainda – para que mais nenhuma mulher seja descredibilizada, chamada de louca ou aproveitadora por denunciar um estupro. Repito o que aprendi com a minha própria história: os únicos culpados por abusos são os seus autores. Sempre. Nunca a vítima.

 

SAIU NO SITE MARIE CLAIRE

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