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Especialistas ouvidos pela reportagem apontam a efetivação das políticas públicas de prevenção, o combate à desigualdade de gênero e ao machismo e a educação para os jovens como base para mudar o cenário de abusos contra as mulheres no Estado

 

Os últimos gritos de socorro foram ouvidos por um vizinho. O homem ajudou e acabou ferido, mas não conseguiu evitar a morte de Elenir de Siqueira Fontão, 49 anos, golpeada duas vezes no lado esquerdo do pescoço por uma faca. A educadora Elenir faz parte de estatísticas trágicas. O Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo.

A diretora da escola Estadual Januária Teixeira da Rocha, no bairro Campeche, em Florianópolis, morreu por volta das 18h do último dia 19, depois de ser levada para um banheiro pelo ex-namorado, Geovanio da Silva Agostinho, 39 anos. Preso em flagrante, o homem morreu quatro dias depois na Penitenciária de Florianópolis, enforcado. De acordo com o Departamento de Administração Penal Prisional (Deap) de SC ele estava isolado na cela.

Elenir foi mais uma vítima de feminicídio, como se tornou conhecido a partir da Lei Maria da Penha o assassinato praticado por motivação de gênero, ou seja, pelo fato de a vítima ser mulher. Um dos êxitos da Lei 13.104, de 2015, foi introduzir a figura do feminicídio na legislação penal brasileira sob a forma de qualificadora do delito de homicídio doloso.

Histórias de mulheres que lutaram contra a morte

Apesar de maior rigor da lei, dados recentes mostram que a cada duas horas uma mulher é assassinada no país. Santa Catarina não é exceção nesta tragédia social. Em 2019 houve aumento com relação ao ano anterior – tendência verificada também em outros estados –, quando 59 mulheres foram assassinadas em terras catarinenses. Levantamento de 2018 mostram números superiores à média nacional, 42 casos. Nos dois primeiros meses deste ano já são seis feminicídios no Estado.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostrou que 88,8% dos autores dos feminicídios eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Tal qual Elenir. Quase de 66% dos crimes foram praticados dentro de casa. Portanto, trata-se de delito praticado majoritariamente pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo.

É o que mostra o resultado da pesquisa “Raio-X dos Feminicídios”, de 2018, na qual o Ministério Público de São Paulo concluiu que 45% dos feminicídios ocorridos naquele estado teriam sido causados pela não aceitação da separação ou rompimento. Além dos 30% dos casos motivados por ciúmes, sentimento de posse e machismo.

Por isso, sem investimento em políticas de prevenção, assistência e garantia de direitos, o combate à violência contra as mulheres não passará de capital político nos discursos de gestores e parlamentares. E continuarão a chorar familiares e amigos. Como no recente caso da educadora Elenir.

violência contra a mulher
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 mostrou que 88,8% dos autores dos feminicídios eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Quase de 66% dos crimes foram praticados dentro de casa

(Foto: Tiago Ghizoni/NSC Total)

A mortalidade de milhares de mulheres poderia ser evitada”, diz defensora pública

Anne Auras é defensora pública do Estado de Santa Catarina e atua na orientação e assistência jurídica de mulheres em situação de violência doméstica e familiar na Comarca de Florianópolis. A rotina permite-lhe afirmar:

– A mortalidade de milhares de mulheres poderia ser evitada com a efetivação de políticas públicas voltadas à prevenção da violência, bem como à assistência e à garantia dos seus direitos.

Anne explica que antes da facada ou tiro derradeiro boa parte das vítimas de feminicídio já havia sofrido agressões anteriores.

– O assassinato é o triste desfecho de um ciclo crescente de violências, que pode envolver violência psicológica (ofensas, humilhações, ameaças), patrimonial (privação da mulher ao acesso aos seus bens pessoais), violência sexual (mulher é forçada a manter relações sexuais, interrompe gestação, deixar de fazer uso de métodos contraceptivos) e violência física (empurrões, puxões de cabelo, socos, tapas).

Para ela, no que se refere à prevenção cabe ao poder público desenvolver políticas de promoção da equidade de gênero, levando o tema da desigualdade de poder entre homens e mulheres à sociedade e às escolas. A assistência e garantias de direitos para mulheres neste contexto é dever do Estado:

– É imprescindível que se invista na ampliação e no fortalecimento de uma rede articulada de atendimento à mulher em situação de violência, com servidores capacitados para o acolhimento humanizado e respeitoso, aptos a orientar a encaminhar aos serviços adequados.

violência contra a mulher
Vítima de violência doméstica luta para se recuperar dos danos físicos e psicológicos causados

(Foto: Guilherme Hahn/Especial)

“A resposta punitiva chega sempre atrasada”

Anne sugere que não se deva ignorar a importância da punição ao agressor. Mas entende que o poder público não deva se limitar a reprimir:

– A resposta punitiva chega sempre atrasada, pouco contribui para o empoderamento da vítima e ignora os inúmeros motivos pelos quais milhares de mulheres continuam deixando de denunciar as violências que sofreram.

Anne explica que sociedades com altos índices de feminicídios – como o Brasil – costumam apresentar elevados níveis de tolerância com relação à violência contra a mulher. Por muitos anos, a violência praticada contra as mulheres em um relacionamento íntimo ou familiar permaneceu na invisibilidade, encarada como legítima em uma lógica do patriarcado, justificável e até compreensível quando um homem que agia por “legítima defesa da honra” ou no contexto de “crime passional”.

– Hoje, temos uma série de marcos normativos que deslegitimam essa violência e impõem ao poder público a efetivação das políticas de prevenção e combate à violência contra as mulheres, como é o caso da Lei Maria da Penha – conclui a especialista.

“É o desdobramento mais explícito da subjugação”, diz especialista

A advogada Fernanda Martins, mestre em Direito e doutora em Ciências Criminais, lembra que reconhecer o feminicídio como uma prática específica faz parte de lutas históricas pelo enfrentamento à violência contra a mulher. Mas ela faz um alerta:

– Para além de uma política criminal que prevê especificamente na legislação tal crime, as demandas atuais promovidas pelas feministas estão inseridas na urgência de identificar que a responsabilidade pelos altos números de mulheres assassinadas está conectada à naturalização da violência e das práticas machistas no cotidiano. Elas não serão modificadas sem o compromisso coletivo em nomear, ou seja, identificar todas as formas de abuso de poder sobre as mulheres em que a morte é o desdobramento mais explícito do uso da força como subjugação do outro.

Para a especialista, o assassinato de mulheres não é uma prática como outro homicídio qualquer.

– É um tipo de crime com especificidades, como a humilhação da vítima. Há uma hierarquização, o matador exerce uma relação de poder sobre a vítima, revela a vulnerabilidade do corpo da mulher, como se o assassino tivesse uma autoridade sobre esse corpo e vida da vítima.

Fernanda explica que quando se fala em feminicídio, geralmente se conecta a expressão “tipificação penal” à conduta que está prevista como crime no Código Penal atribuído aos casos em que o assassinato (ou sua tentativa) é intencionalmente motivado pelo gênero feminino da vítima. No entanto, alerta que nomear feminicídio como uma categoria política e social não necessariamente exige que o Estado reconheça a prática como crime previsto pela lei penal.

– É necessário afirmar que políticas de enfrentamento reais ao problema exigem debates sérios sobre desigualdade de gênero, em que a liberdade e a autonomia sexual, econômica e afetiva de mulheres e as relações de abuso de poder nos espaços de trabalho, de ensino e religiosos sejam temas centrais quando se fale sobre os casos de feminicídio.

Tema para a sala de aula

O fim do machismo que provoca violência contra mulher deve passar pela sala de aula. É com educação das crianças e jovens que uma cultura diferente pode estimular novos comportamentos. Para subsidiar o trabalho da educação e a prevenção às violências, a Secretaria de Estado da Educação tem formalizada, desde o ano de 2011, a política de educação, prevenção, atenção e atendimento às violências na escola.

O Núcleo de Educação e Prevenção às Violências na Escola (Nepre) está presente nas 36 Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) e nas 1.065 unidades escolares.

– As escolas são orientadas a desenvolver de forma contínua atividades voltadas à prevenção das violências, abordagem da desigualdade entre homens e mulheres, formas de violência contra a mulher, entre outros temas, de forma transversal e não apenas como conteúdos isolados – diz Rosimari Koch, do Nepre.

A educadora explica que professores e coordenadores também são orientados a ter um olhar atento às situações e comentários na sala de aula, para educar e prevenir ocorrências de violências.

– Não basta abordar apenas com palestras, rodas de conversa, campanhas e exposição de cartazes. É preciso que haja profundidade ao tratar o tema, e, alinhamento com o trabalho pedagógico – defende Rosimari Koch.

Projeto para abrigar vítimas ficou no papel

A Casa da Mulher Brasileira, projeto do governo federal para auxiliar vítimas de violência doméstica, nunca foi inaugurada em Santa Catarina. Idealizado em 2013, ano em que todos os estados assinaram um pacto pelo enfrentamento da violência contra a mulher, o espaço de Florianópolis ofereceria em um só lugar (próximo à Delegacia da Mulher, no bairro Agronômica) estrutura para registrar boletim de ocorrência, receber atendimento de psicólogos e assistentes sociais, ajuda judicial e abrigo para alguns dias, para evitar contato com o agressor. Pelo acordo, o governo federal bancaria a obra e equipamentos, enquanto governo do Estado e prefeitura cederiam os profissionais. O pacto se encerrou em 2017.

Apesar de não ter saído do papel, o Estado responde que existe serviço de acolhimento para mulheres em situação de violência. Na modalidade de Abrigo Institucional e, segundo a gerência de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Secretaria de Desenvolvimento Social, encontra-se presente em 10 municípios e oferece 236 vagas.

O abrigamento é um dos serviços. Embora exista uma discussão sobre ser também uma forma de violência contra a mulher, já que essa precisa sair de casa e até abandonar o emprego. O ideal é afastar o homem autor da violência. Nenhuma mulher é abrigada de forma compulsória. Há situações em que a ela própria mulher decide sair de casa, e nesse caso o acolhimento funciona como um dos serviços protetivos. Há casos em que as mulheres preferem se abrigar na casa de parentes.

Em programa da PM, policiais amparam às vítimas que têm medidas protetivas Mulheres que sofrem violência podem contar com o programa institucional da Polícia Militar de Santa Catarina, o Rede Catarina. Direcionado à prevenção da violência doméstica e familiar, busca aproximar e dar celeridade às ações de proteção à mulher. O programa se sustenta em ações de proteção, no policiamento direcionado da Patrulha Maria da Penha e na disseminação de solução tecnológica.

Em Blumenau, policiais militares visitam vítimas de violência doméstica que conseguiram na Justiça medida protetiva contra os agressores. Através do programa Rede Catarina, os quatro agentes vão semanalmente às casas das mulheres para acompanhar o cumprimento da exigência judicial e, se for necessário, abordar os suspeitos.

A Rede Catarina existe há pouco mais de dois anos e já cadastrou cerca de mil mulheres na cidade. Atualmente, 79 têm a situação monitorada pela equipe. Entre 2018 e 2019, o número de participantes aumentou 34% (passou de 379 para 509). Conforme a coordenadora do programa em Blumenau, tenente Karla Medeiros, de todos os casos acompanhados em 2019, 14% registraram a reincidência da violência. As agressões de companheiros são as mais comuns, representando 82% das ocorrências. Histórias de filhos que maltratam as mães representam 6,6%.

Em Joinville, a Rede Catarina existe desde o final de 2018, mas o trabalho começou efetivamente no início do ano passado com as visitas periódicas da PM na casa de vítimas de violência doméstica e familiar. Em 2019, foram atendidas 159 mulheres com medidas protetivas concedidas pela 4ª Vara Criminal de Joinville. O programa funciona nos dois batalhões da PM na cidade, que fizera uma média de 300 visitas em todo o ano passado. Cerca de 20 agressores também receberam visitas.

Atualmente, são cerca de 100 mulheres em acompanhamento em Joinville. Conforme o sargento Wesley Mattge, integrante do projeto, as agressões e ameaças dos companheiros são as ocorrências mais comuns.

Pelo celular

Em Chapecó o programa “Guardiã Maria da Penha” foi criado em 2016 no 2º Batalhão de Polícia Militar, com o objetivo de acompanhar diariamente as mulheres que possuem medida protetiva e também os agressores. Atualmente é o programa Rede Catarina de Proteção à mulher que consiste em uma equipe que recebe da Justiça as medidas determinadas e entra em contato com a vítima. Caso ela aceite, o grupo faz o acompanhamento via aplicativo de celular e também com visitas periódicas na casa da vítima.

São repassadas orientações sobre a rede de proteção e legislação. Também há orientação ao agressor. Tudo isso acaba inibindo a reincidência do agressor. Desde 2016 já passaram pelo programa 1.710 mulheres e 384 masculinos. A reincidência registrada foi de apenas 16 casos até novembro do ano passado. Atualmente 64 mulheres estão sendo acompanhadas.

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A partir do programa Rede Catarina, oficiais da PM acompanham o cotidiano de mulheres que têm medidas protetivas para saber se a ordem judicial está sendo cumprida

(Foto: Patrick Rodrigues/NSC Total)